O Pequeno Poder e os Cadáveres Ambulantes
Michel Leme |
Relevância, na sociedade materialista de hoje, é definida pela quantidade de lucro que algo ou alguém gera e pelo seu nível de exposição na mídia.
A ordem desses dois fatores não importa, já que uma coisa vai levar à outra - basta estar ‘inserido’.
Isso quer dizer que, sob este ponto de vista infame, na imprensa dita musical as pessoas vazias e desprovidas de qualquer talento podem ter muito mais relevância (e conseqüente exposição) que artistas de fato. Isso, óbvia e infelizmente, é o que mais se vê por aí.
Um dos principais problemas da área cultural de jornais, revistas semanais, TVs e alguns sites que atingem um público maior é que os jornalistas responsáveis por publicar agendas e resenhas sobre CDs e shows não saem em busca de pauta. Todo esse material simplesmente cai no colo deles, aos montes. Então, acomodados e com egos cada vez mais inflados, eles se travestem do mesmo "pequeno-poder" dos porteiros de boate em relação às "suas" agendas culturais: eles decidem quem entra ou não!
Mas será que a base dessa decisão é justa, ou mesmo limpa? Pergunto isso porque, se o assunto fosse realmente música, provavelmente as seções de shows das agendas culturais que vemos por aí seriam bem diferentes. A verdadeira cena musical não corresponde apenas aos 'grandes shows' para mais de cinco mil pessoas ou ao que acontece apenas nos lugares da moda. A música acontece também em lugares para apenas cinqüenta pessoas, por exemplo, (e eu me arrisco em dizer que acontece muito mais nesses ambientes do que nas grandes produções, onde a espontaneidade é um mero truque de cartas marcadas), e isso não é relevante?
Sob o ponto de vista musical/artístico, é relevante sim, com certeza. Já presenciei maravilhas acontecendo nos bares por aí, muitas e muitas vezes - seja música instrumental ou cantada. Posso testemunhar também que muitas pessoas que estavam presentes em várias noites nas quais toquei (eventos invariavelmente desprezados pela mídia, diga-se) fizeram e fazem questão de me procurar pra comentar, mesmo semanas (ou anos) depois! E essas pessoas voltam nos próximos shows, compram CDs, etc. Isso é algo que vai muito além de ser relevante ou não para esses veículos, é algo de verdade.
Então, porque este tipo de arte deve ficar escondida, restrita a guetos? Porque isto vem sendo proibido de chegar ao grande público - mesmo com os assessores dos artistas e os bares (e pequenas casas de shows) mandando agenda para estes veículos? Onde está a tal independência jornalística na hora de divulgar, na mesma agenda (ou numa mesma cobertura), um evento para dez mil pessoas e, na mesma página, um outro pra quarenta pessoas? Ou mesmo o evento de um artista contratado de uma corporação multinacional e o de um artista independente? Enfim, onde acaba o jornalismo e onde começa o comércio?
A posição de jornalista seria reservada para aqueles que têm como objetivo informar, levar o que realmente acontece a público, listar as opções, etc. Mas isso não é o que vemos nessas agendas ou guias culturais. É o 'mais do mesmo' a cada publicação e pronto! Talvez isso ocorra por mero capricho, talvez por incompetência, por lobby, não se sabe... Mas só por barrar a divulgação de manifestações artísticas por meio da omissão, já se está privilegiando as imbecilidades que as corporações precisam desovar de seus estoques. E só está livre de ser "barrado", obviamente, quem paga (bem caro) por anuncios nesses veículos ou quem está "inserido" na Indústria Cultural - como os contratados de gravadoras multinacionais, "celebridades", etc.
Como as corporações são sempre os anunciantes mais fortes, a independência jornalística se reduz a mera bravata, expelida pelos cadáveres que ocupam o lugar de jornalistas sérios e aceita pelo verdadeiro exército dos ingênuos 'consumidores que acreditam pensar'. "Eu assino a revista 'x'. Estou sabendo das coisas!" - dizem com orgulho. Mal sabem...
Quanto ao pseudo-jornalista, não consigo achar outro adjetivo para alguém que arrota ser conhecedor de Wagner, mas que, efetivamente, só ajuda a vender Fergie e congêneres... É um cadáver! E ao invés de estar enterrado, é um cadáver ambulante, que serve como mais um hospedeiro para os vermes do lobby e da conseqüente perpetuação da mediocridade generalizada imposta pela Indústria Cultural.
Se meu testemunho vale algo, em quatorze anos tocando música instrumental por aí, conto nos dedos as vezes em que saiu algo referente ao meu trabalho nos chamados grandes veículos da mídia. E tem muita, muita gente sendo excluída por aí também, obviamente. Estou querendo holofotes? Não, apenas igualdade. Quero apenas que a agenda que esses caras recebem seja publicada. E, se possível, que isto seja feito de forma justa, com base em critérios musicais e artísticos.
O que fazer, então?
Em primeiro lugar, boicote! Eu, por exemplo, não compro e não assino nenhum desses veículos. Acho que, além de terem essa política abjeta de privilegiar aos que estão inseridos na Indústria Cultural, eles são uns vendidos de uma forma geral - é só reparar no destaque que dão a novelas e reality-shows, por exemplo... É patético. Esses espaços caríssimos poderiam ser usados pra divulgar cultura de verdade, mas não são - e não é por falta de pauta. Vamos parar de financiar quem nos despreza.
Em segundo lugar, procurar veículos realmente independentes. Continuo mandando minhas datas de shows para sites que, apesar dos modestos recursos, sempre as publicam, e de forma pontual. Além disso, eles exibem uma agenda de shows realmente democrática, que serviria de exemplo de prática jornalística para os chamados 'grandes veículos'.
E, enquanto esse estado de coisas permanece, quero desejar aos "jornalistas-cadáveres" um bom salário (e "vantagens adicionais") nesse mês e que continuem sendo adequados à Indústria Cultural. Vocês se merecem.
Michel Leme
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